“À propósito de nada”, titulo original do recente livro de Woody Allen é impregnado do próprio humor niilista do autor. No Brasil a publicação recebeu a pálida alcunha de A autobiografia. Depois de seis décadas sendo celebrado como diretor, escritor, roteirista e músico (medíocre, segundo ele) Woody Allen ressurge em plena politica de cancelamento para tocar num vespeiro tão grande quanto o polêmico imbroglio gerado pela acusação de pedofilia que levou ele e Mia Farrow a uma milionária disputa judicial.  Assim, o autor do livro confirma a máxima de que a melhor maneira de se preservar a intimidade é invadir o mundo com ela. E narra com certa poesia e no velho estilo que o tornou famoso, sua infância no Brooklin, sua passagem por constrangedores stand ups, a esnobada no Oscar e sua amizade com figuras tão icônicas quanto Bergman, Truffaut, Godard, sem falar na verdadeira constelação de astros do showbusiness que tantas vezes abriu mão de cachês milionários para filmar com o diretor.

– Nunca contrato atores que dão trabalho, diz ele, saio da frente deles e os deixo atuar. Além, claro, de escrever muito bem, Wood Allen não foge de nenhum assunto, seja relacionamentos, tretas com famosos ou o namoro com sua ex-enteada Soon-Yi, iniciado quando ela tinha 22 anos. A forma como Mia Farrol descobriu o romance dos dois é digna de um de seus roteiros. Morando em casas separadas, depois de um relacionamento já bastante distante e desgastado, Mia encontra sobre a lareira do apartamento de Woddy, diversas fotos polaroides picantes que os amantes haviam feito em tom de brincadeira. Deu no que deu. Alvo de toda a fúria da ex, Woody Allen, no entanto, exalta o tempo todo seu talento como uma das melhores atrizes com quem já filmou, mas também se refere a um suposto lado tirano e manipulador no quesito maternidade, incluindo maus tratos, segundo depoimento do filho Mosem.

Allen descreve ainda o parecer de duas importantes instituições independentes ligadas ao abuso sexual infantil, uma delas contratada pela própria Mia, que o inocentam da acusação de ter molestado a filha Dylan. Lá pelas tantas o autor alfineta o #Me-Too sobre a politica atual onde a mulher teria sempre razão:- Diga isso aos rapazes de Scottisboro, diz, referindo-se aos 9 adolescentes negros acusados de estuprar duas meninas brancas num trem em 1931.  Cancelado aos 84 anos, a decisão judicial a seu favor não foi suficiente para liberar a exibição de Um dia de chuva em Nova Iorque na cidade onde foi filmado. Timothée Chalarmet depois de declarar publicamente seu arrependimento por ter feito o filme doando seu cachê para o #Me-too, jurou para a irmã do diretor que foi obrigado a ter essa atitude já que concorria ao Oscar por Me chame pelo seu nome e suas chances de ganhar seriam maiores se fizesse uma declaração negativa sobre o diretor. Á propósito de nada tenta apagar com gasolina o fogo presente no momento moral que justificavelmente vivemos já que Woody Allen muitas vezes encarna o tio Sukyta e erotiza a descrição de algumas atrizes como Scarlett Joahnsson, Penélope Cruz, entre outras. Mas não deixa de ser interessante ver o estilo sempre espirituoso do escritor numa espécie de desconstrução de sí mesmo ao tentar desfazer a fama de intelectual atribuindo-a ao fato de usar óculos de aros pretos ou de sua eficiência em citar boas referências. Para os estudantes de cinema, ele revela: “Não tenho nada de valor a oferecer. Meus hábitos de filmagem são preguiçosos, indisciplinados, a minha técnica é a mesma de um ex-estudante de cinema fracassado que foi expulso da universidade.”  O pânico de chegar ao set e não saber aonde colocar a câmera ainda o acompanha no livro, assim como sua arqui-inimiga realidade: “Detesto o real mas é ainda o melhor lugar aonde ainda se pode comer boas asas de frango.” Autêntica e bem-humorada esta autobiografia confirma todo o desencanto e o niilismo presente ao longo de toda a carreira do autor. É certo que daria um bom roteiro para o cinema se o mesmo fosse escrito e dirigido por um tal de Allan Stewart Königsberg, também conhecido como Woody Allen.