Christophe, meu primeiro filho, tinha 4 anos quando vim morar aqui nos Estados Unidos. Esqueceu nosso idioma durante os dois meses que levou pra aprender inglês, mas o recuperou durante as visitas que fizemos ao Brasil. Olivia nasceu aqui, quando Chris tinha sete anos. Aprendeu português conversando comigo e com os primos lá no Rio. Continuando a conversar comigo, que em cada frase dirigida a eles misturo inglês e português, eles entendem tudo e falam bem a minha língua original. Mas fazem pequenos erros que são adoráveis, e me revertem `a poesia do falar das criancinhas. Eu não gostava de corrigi-los, mas, como querem falar “direito”, me pediram pra quando fizessem os tais erros lhes chamar a atenção.

Até então, quando os ouvia, só conseguia falar “que fofo!” e eles se revoltavam, mesmo que eu lhes explicasse que as pessoas no Brasil não estariam nem aí pra isso. Brasileiro sabe entender tudo, e até curtir essas variações.  Mas passei mesmo a corrigir os tais erros. Entretanto, como ia dizendo, estes erros transmitiam a dimensão poética do falar da primeira infância.

Em pequeno, Chris que sempre foi muito falante, dizia coisas que de tao inocentes, engraçadas, e inusitadas, renovavam meu pensamento e as próprias palavras que ele usava, parecendo terem sido sopradas por Deus.

Será que essa força poética da linguagem infantil tem a ver com uma “sintaxe” (que palavra feia alias) do sentimento, substituindo a tradicional, a quebra de regras desta última dando lugar `a novidade absoluta em que cada palavra e cada combinação de palavras soam como se acabassem de nascer?

Assim como nos transmitem total liberdade de pensamento, esse modo de falar que é “errado”, diante dos nossos petrificados padrões linguísticos, também nos inspira pensar com a mesma liberdade. Aqui vai um exemplo:

Quando Chris era bem pequeno, gostava de relembrar quem lhe havia dado “isso” ou “aquilo”. Então me disse uma vez:

“Edgar me deu essa camisa e Helene me deu essa meinha” (pequena meia)

“E quem te deu esse pezinho? Perguntei, segurando um dos seus pés.

“O pezinho eu já tinha…”  ele respondeu com naturalidade.

Naturalidade sim, mas de grande complexidade. “Eu já tinha” evocava tanto uma dimensão atemporal, tipo “Deus me deu”, como um momento anterior no próprio tempo, tipo “eu já tinha antes de ganhar a meia”.

Uma outra vez, ele me pediu pra ver de novo uma peça infantil de que tinha gostado muito. Então, eu lhe disse:

“Você amou aquela peça hein?”

“Quero amar ela de novo!” respondeu.

Nesses exemplos as palavras estão individualmente certas, mas a maneira de usá-las e o contexto que evocam é completamente novo, assim como é completamente novo e deliciosamente desconcertante o animismo das criancinhas.

Disse-me Christophe, uma vez em que estávamos pra sair e o carro não pegou:

“O carro mimiu!” (O carro foi dormir)

“Tem que chamar o mecânico pra acordar ele” respondi na mesma moeda.

Como se pode corrigir o que expressa uma realidade mais intensa? Como se pode corrigir uma “lógica” que está para além da repetitiva e cristalizadora logica tradicional?

Do mesmo modo, o erro nas palavras particulares também renova o que essas palavras transmitem. Quando Olivia tinha dois anos e eu lhe disse, voltando de um passeio:

“I love you!”

Ela respondeu, me fazendo sentir com muito mais força o conteúdo das palavras “I love you”:

“I vah you too!” (I love you too)

Desde que é muito mais integro o mundo feminino repartir a feminilidade desde as palavras com que se expressa até as frases e pensamentos, talvez seja o mesmo animismo que, tão natural à primeira infância (como se apontasse para a verdade imemorial de todas as coisas, como no desenho animado, repartirem a mesma vida) o que levou Chris a dizer, quando recentemente conversou com um dos pajés nossos amigos sobre a natureza, sobre a depredação da floresta e a falsa superioridade do homem “civilizado”, principalmente os endinheirados, em relação à mulher e `a mãe terra:

“Eles têm que aprender a respeitar “a sagrada feminina”!

Tem como corrigir isso? É bonito demais, livre demais, e, sim, coerente demais!  Coerente num reino que esta bem acima das regras que viram fórmulas: O reino do coração!