As pessoas adoram rótulos. Proust é considerado agnóstico, por não declarar, com todas as letras, ter fé em Deus. Mauriac chega a dizer que Deus está ausente da Recherche. Que absurdo!

Pra começar, Proust diz que um livro com teorias é como um objeto com a marca do seu preço. Coerente com isso, ele,  ao invés de afirmar ter fé- o que implicaria uma posição que acredita na universalidade da fé, sendo portanto uma posição teórica (que se quer válida para todos) Proust transmite a sua própria experiência dessa fé, de modo que o leitor a vivencie, dentro de si mesmo. Proust não tem fé, ele se tornafé, ao escrever. Não acredita em Deus, simplesmente vivencia, o divino.

Ao relatar a sua experiência do espírito, no “Le Temps Retrouvé” ele se descreve, enquanto que narrador da sua obra, como o homem arrancado da cronologia do tempo, o homem que só pode encontrar seu prazer e nutrição na essência das coisas; o ser que só se revela quando, através de uma identidade entre o presente e o passado, ele vem a se encontrar no único meio em que pode subsistir, e que é fora do tempo.

Mas nessa atemporalidade nirvânica, Proust inclui a dimensão física de sua experiência, pois é através desta, quer dizer, através do que lhe vem pelos sentidos do corpo, que ele alcança a  eternidade do que viveu. Tal dimensão se refere `a sensação física e portanto particular que irrompe no presente, tendo primeiramente sido vivida no passado. Como quando cheiramos um perfume, depois de muitos anos em que o perdemos de vista, e o seu odor nos traz de volta o tempo passado em que este nos era habitual, com uma intensidade muito maior do que aquilo que nos é realmente presente.

Estando assim, numa fração de segundos, nem lá, nem cá, ou, por outra, lá, e cá, (no passado e no presente), sentimos o prazer que resulta da experiência de identificação entre o que ja foi e o que ainda é, quer dizer, o prazer da libertação da própria cronologia do tempo,  deleite de uma absoluta liberdade, e, ainda assim, de uma familiaridade immemorial, como que um reencontro com a eternidade. Aliás, vale aqui dizer que, segundo Proust, o verdadeiro paraíso é o paraíso perdido.

Tal reencontro, por mais celestial que seja, não pode ser alcançado pelo pensamento puro, ou pela memória voluntária, desde que tem origem numa sensação física, causada pelo encontro inesperado com um objeto material no nosso caminho, como o perfume, do exemplo que dei acima. Desse modo, Proust dá prioridade `a concretude da dimensão física, na própria busca da essência, ou elemento atemporal: na busca do espírito.

O instante transcendente em que o passado ressuscita, sendo vivenciado no presente, é também a ressurreição da fisicalidade, desse passado. Assim, Proust mantém o elemento temporal na própria atemporalidade, dizendo “ Tantas vezes na minha vida, a realidade me decepcionou porque, no momento em que a percebi, minha imaginação, o único órgão que goza a beleza, não podia se aplicar a ela, devido à lei inevitável que só nos permite imaginar aquilo que não faz parte do presente. Mas eis que de repente, o efeito dessa dura lei se encontrou neutralizado, suspenso, por um maravilhoso expediente da natureza, que espelhou a mesma sensação no passado, o que permitiu minha imaginação apreciá-la, e no presente, quando a afetação dos meus sentidos, pelo objeto que causou essa sensação, adicionou, ao devaneio da imaginação, aquilo que geralmente não se encontra nele: a idéia de existência, permitindo, graças a esse subterfúgio, que meu ser obtivesse, isolasse, imobilizasse, o que ele nunca percebe: uma parcela de tempo em estado puro.

Segundo Proust, o ser que nele renasceu quando, com tal tremor de felicidade, ele experimentou sensaçōes passadas tornando-se presente, só se nutre da essência das coisas, e só nelas  encontra a sua subsistência.

“Que um barulho que já foi ouvido, um odor outrora respirado, sejam novamente vivenciados no passado e no presente de uma só vez, tornando-se reais sem ser atuais, ideais sem ser abstratos, a essência permanente e habitualmente escondida das coisas é liberada, e nosso verdadeiro eu acorda, se anima, ao receber o alimento celeste que lhe é trazido. Um instante tirado da ordem do tempo recriou, em nós, para senti-lo, o ser tirado da ordem do tempo.”

Para resumir, esse ser atemporal, que prova o alimento celeste a ele trazido, se encontra, por um instante, no estado em que suas sensaçōes físicas se tornam reais sem ser atuais, ideais sem ser abstratas: no paraíso.

Em outras palavras, essas sensacōes físicas são reais sem se localizarem no presente cronólogico, ideais,  portanto, ao mesmo tempo que concretas. Esse estado nirvânico, que apresenta uma realidade concreta, a qual, entretanto, não pertence `a ordem do tempo, é a ressurreição do elemento físico, e, o instante liberado da cronologia, (que Proust chamou de tempo em estado puro), é a existência concreta,  porém transcendente: a  ressurreição da carne.

O narrador atemporal de Proust, aquele que só vive da essência das coisas, (o nosso verdadeiro eu, nas suas palavras) é aquele que, através da ressurreição das suas próprias sensações, tem a experiência de um flash do paraíso: ele é a nossa alma individual!