Eleanor Duvivier

Proust foi considerado agnóstico, por não ter diretamente declarado sua fé em Deus, ou numa realidade transcendente. Pergunto-me como o rótulo agnóstico pode ser tão simplesmente aplicado a Proust, como se ele não houvesse dito que um livro com teorias é como um objecto em que se vê a marca do preço pendurada, quer dizer, vulgar. Pois, a posição Proustiana contra teorias na literatura deve naturalmente excluir, da parte desse grande escritor, declarações objetivas sobre aquilo que não se conhece. Em outras palavras, se Proust declarasse sua fé diretamente, ao invés de transmitir a experiencia desta, e com isso tornar o leitor capaz de experimentá-la por si mesmo, ele estaria tomando uma posição teórica, quer dizer, fazendo uma afirmação que, independente de qualquer experiencia pessoal, se proporia objetiva e, portanto, cognitivamente verdadeira. Devemos lembrar que Proust viu seu leitor como o leitor de si mesmo, ou seja, como alguém que se descobre através da propria auto-descoberta do narrador da Recherche; alguém que, ao invés de aprender sobre auto-descoberta, a experimenta. Coerente com isso, Proust não afirma a existência de uma realidade transcendente, mas a transmite, através da densidade poética das suas descrições e “insights”. Nesse sentido, ele não tem fé, mas se faz fé. Proust se faz fé ao compartilhar sua experiencia, humildemente pessoal, de uma realidade atemporal e espiritual, no Le Temps Retrouvé, por exemplo. Sendo o tempo aquilo que corroi, destroe, e torna relativo tudo em que nele vive, contrariamente `as essencias, que, atemporais, são incorruptíveis e absolutas, Proust descreve o narrador de sua obra, o homem que só encontra prazer e alimento na essencia das coisas- como o homem arrancado da cronologia do tempo.“… un être qui n’aparaissait que quand, par une de ces identités entre le present et le passé, il pouvait se trouver dans le seul milieu ou il put vivre, jouir de l’essence des choses, cest-`a-dire en dehors du temps”. “…um ser que só aparecia quando, através de uma dessas identidades entre o passado e o presente, ele se podia se encontrar no único meio em que podia viver, gozar a essencia das coisas, quer dizer fora do tempo.” Mas essas identidades entre passado e presente, quando Proust descreve a experiencia de uma realidade atemporal, acontece através de sensações do seu corpo. Proust, portanto, reconhece a presença e relevância do elemento físico, mencionando, no desencadear dessa experiencia, as sensações que, primeiramente experimentadas no passado, vem se intrometer no presente, deixando de pertencer tanto a um como ao outro e os identificando, quer dizer, rompendo seus limites cronológicos:L’être qui était rené en moi quand, avec un tel frémissement de bonheur, j’avais entendu le bruit common `a la fois `a la cuiller qui touche l’assiette et au marteau qui frappe sur la roue…” “…cet être là ne se nourrit que de l’essence des choses, en elles seulement il trouve sa subsistence, ses délices.O ser que renasceu em mim quando, com tal estremecer de felicidade, eu ouvi o barulho comum ao da culher que bate no prato e ao do materlo que bate na roda,”…. “este ser so se nutre da essencia das coisas, só nelas ele encontra a sua subsistência, suas delicias.” Tão celeste quanto espiritual, tal experiencia, de acôrdo com Proust, nunca pode ser alcançada pelo intelecto, ou pela vontade consciente. Dando então, na dimensão atemporal, prioridade `a concretude do elemento físico sôbre o pensamento “desincarnado”, a epifania Proustiana se reverte `a relevância da fisicalidade nessa dimensão, que, livre das limitações cronológicas, a teria eternamente presente, como uma ressurreição da carne. Ressuscitado também é o proprio tempo (principal categoria existencial, juntamente com o espaço) pois Proust mantém, na ordem atemporal, o elemento temporal purificado, como se fosse pura existencia, ou seja, existencia fora de qualquer cronologia, quando ele diz: Tant de fois, au cours de ma vie, la réalité m’avait deçu parce que, au moment `ou je la percevais, mon imagination, qui était mon seul organe pour jouir de la beauté, ne pouvait s’appliquer `a elle, en vertu de la loi inévitable qui veut qu’on ne puisse imaginer que ce qui est absent. Et voici que soudain l’effect de cette dure loi s’était trouvé neutralisé, suspendu, par un expedient merveilleux de la nature, qui avait fait miroiter une sensation- bruit de la fourchette et du marteau, même inégalité de pavés- `a la fois dans le passé, ce qui permet `a mon imagination de la goûter, et dans le présent o`u l’ébranlement effective de mes sens par le bruit, le contact, avait ajouté aux rêves de l’imagination ce dont ils sont habituellement dépourvus, l’idée d’existence et, grâce `a ce subterfuge, avait permits `a mon être d’obtenir, d’isoler, d’immobilizer- la durée d’un éclair- ce qu’il n’appréhend jamais: un peu de temps `a l’état pur. Tantas vezes, através de minha vida, a realidade me decepcionou porque, no momento em que a percebi, minha imaginação, que era meu único órgão para gozar a beleza, não podia se aplicar a ela (`a realidade), em virtude da lei inevitável de só podermos imaginar o que é ausente. E veja que de repente o efeito dessa dura lei se encontrara neutralisado, suspenso, por uma maravilhosa expedição da natureza, que fez a mesma sensação- barulho da culher e do martelo- brilhar no passado, o que permite `a minha imaginação degustá-la, e no presente, quando o sacudir de meus sentidos pelo barulho, pelo contacto, adicionou aos sonhos da imaginação aquilo de que geralmente são desprovidos, a noção de existencia e, graças a esse subterfúgio, permitiu ao meu ser obter, isolar, imobilizar-a duração de um raio- o que ele nunca experimenta: um pouco de tempo em estado puro. E o mais interessante: Mais qu’un bruit déjà entendu, qu’une odeur respirée jadis, le soient de nouveau, `a la fois dans le present et dans le passé, réels sans être actuels, idéaux sans être abstraits, aussitôt l’essence permanente et habituellement cachée des choses se trouve libérée et notre vrai moi qui, parfois depuis longtemps semblait mort mais ne l’était pas autrement, s’éveille, s’anime en recevant la céleste nourriture qui lui est apportée. Une minute affranchi de l’ordre du temps a recrée en nous pour la sentir l’homme affranchi de l’ordre du temps. Mas que um barulho já ouvido, que um odor outrora respirado, o sejam de novo, ao mesmo tempo no presente e no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, imediatamente a essencia permanente e habitualmente escondida das coisas é liberada e o nosso verdadeiro eu, que por muito tempo parecia morto mas na verdade não estava, desperta, se anima, recebendo a nutrição celeste que lhe é trazida. Um minuto libertado da ordem do tempo recriou em nós para senti-la o homem libertado da ordem do tempo. De onde é justo concluir que, se sensações fisicas podem ser reais sem por isso estar no presente cronólogico, ideais, e, ainda assim concretas, elas estarão existindo numa dimensão que transcende a realidade. Nesse caso, o homem atemporal que as experimenta, e que recebe a nutrição celeste que lhe chega, está, mesmo que durante poucos segundos, no único “lugar” em que o elemento fisico, ressuscitado na dimensão atemporal, pode ser ideal e ao mesmo tempo concreto, quer dizer, no paraíso. Vivendo no mundo da essencia, e ainda assim da fisicalidade (que é sêlo de concretude e individualidade) esse homem só pode corresponder `a nossa alma individual. Em nome de nosso eu verdadeiro, desejo a todos muita felicidade no Natal, e muita redenção no Ano Nôvo!