Um dos meus sonhos em criança era segurar um passarinho. Pra mim eles eram como brinquedinhos vivos, nascidos do verde das árvores e do azul do céu, de uma mágica tão delicada, que a gente so podia olhar pra eles. Os que se vendia na época, tinham que ficar dentro de uma gaiola, e isso me dava aflição, mas que fazer?

Eu era ainda bem pequena e nem falava direito, quando resolvi fazer um poema, o do passarinho. Eduarda, minha irmã mais velha, era uma poeta consagrada, e achando ela o máximo, tentei ficar `a altura. Estava olhando pro céu, e de repente anunciei pra nossa mãe o meu nascente poema: “O papainho voou, Foi

pousar lá na lua…” Nesse momento, imaginei um passarinho pulando de la pra ca, no galho alto de uma árvore, e continuei: “O tabalho do papainho, é pra la e pra cá… o nome da Eduarda”

Me lembrei disso, quando o nosso passarinho Marley decolou deste mundo, ha dois dias. Ele pertencia `a minha filha Tweety, e estava conosco havia dez anos. Era um connure, nativo da America Central, e parecia um papagainho. Pegou uma gripe, e Tweety o levou pro veterinario, que recomendou um hospital

chocante de animais, numa cidade perto daqui. Pra la ele foi, e mesmo que o vet tenha avisado que ele poderia não sobreviver os exames, nosso passarinho resistiu até sedação, pra tirar raio x do pulmão. Fomos visita-lo no dia seguinte, e ele tinha melhorado muito. Pensei que breve estaria pronto pra voltar pra

casa, do jeito como ele adorou nos rever e como ficou encostando a cabecinha no rosto de Tweety. Na minha vez de segurar ele, conversamos muito. Com ele deitado na palma da minha mão de barriga pra cima, como costumava fazer, eu lhe dizia que tinha valido todo aquele esforço, e ele fechava os olhinhos.

Compramos Marley em Madison, e ele se tornou pra Tweety e eu, uma fonte de humor, comunicação, e carinho. Realizou o meu sonho de segurar um passarinho, e muito mais. Era lindo ver como um serzinho tão pequeno sacava que lhe davamos amor e correspondia, com uma infinidade de pios e expressões

diferentes. O mais incrivel é que ele até se mostrava pra gente.

Um dia em que comentavamos o seu poder de compreensão e as suas proezas, ele, que estava empoleirado no ombro de Tweety, desceu pra cama dela, onde nos sentavamos, e começou a desfilar entre nós duas, de lá pra cá, e daqui pra lá, com a cabeça erguida e o peito estufado, todo pimpão. Tava na cara que se

sentia honrado, e queria nos mostrar que merecia e entendia.

Aquele “show” era tao fofo que a gente não conseguia parar de rir, e ele de “se mostrar”. Proibi que lhe aparassem as penas das asas, pra ele poder voar pela casa, e ele adorava pousar nos lugares altos e ficar lá de cima olhando o que acontecia. Em Madison, sobreviveu a batida de uma porta no seu bico. Tinha até sangue, e tivemos que leva- lo a uma clinica de emergencia, depois da meia noite. O vet disse que ele devia estar com dor de cabeça, lhe deu um analgésico, e disse que era melhor ele passar a noite lá. Se não vingasse, o vet nos telefonaria de manhã cedo. Rezei pra que não telefonasse, e la pelas dez eu propria telefonei. Marley estava pronto pra voltar pra casa, novo em fôlha.

Depois de dois anos em Madison, resolvemos mudar pra Boulder. O vet avisou que pássaros são muito sensíveis, e que não esperassemos que Marley sobrevivesse mudar de estado, de cidade e de casa, pois até pras pessoas é estressante se mudar.

Tinhamos também um cachorro shitzu super apático, e resolvi dar pagamento extra a um dos caras da mudança, pra trazer os dois no seu caminhão numa viagem especial de Madison, quase no norte do país, a Boulder, no centro Oeste. Steve ficou chocado, tendo sempre me dito que americanos so fazem o trabalho que a sua profissão determina, e que aqui não tem essa de oferecer mais grana pros caras darem “um jeitinho”. Mas o cara da mudança adorou a proposta, e pagamos o suficiente pra ele pernoitar com os animais em algum hotel de estrada. Ele preferiu vir direto, e chegou bem antes do esperado, com as pupilas dilatadas por algum “speed” que deve ter tomado pra conseguir dirigir a noite inteira, com os bichinhos a salvo. O cachorro, porém, de esquizito que era, pirou. Entre inúmeras tentativas de fuga, só fazia lamber as paredes da casa que alugamos, com uma devoção religiosa. Nem comer ele queria.

Suas escapadas pra rua movimentada em que moràvamos eram uma calamidade, até que um dia, conseguiu fugir de vez e foi parar na Humane Society. Deixei que de la fôsse adotado. Ja tinhamos ganho a cadela do meu filho, pois ele estava acabando a universidade em Boulder e se mudando pra California. Canina excepcional, essa cadela era, porém, uma ameaça pra Marley.

Achava que ele era caça, e ficava super confusa com as broncas que levava quando tentava dar botes nele. Um dia, Tweety saiu às correrias, esquecendo que ele estava solto no seu quarto, e deixando a porta aberta. Nossa! Nala, a cadela, pràticamente mascou” o passarinho. Tweety o encontrou debaixo da mesa do computador, quase totalmente depenado, as costas em carne viva, e as asas pela metade. Quando o vi, quase tive um ataque do coração, e corremos pra emergencia de animais. A veterinária veio com aquele papo de stress, pra nos avisar que seria difícil ele sobreviver. Radiografou ele e disse que não tinha quebrado nada, mas deveria passar a noite imóvel, com uma camada de remédio nas costas que ele não podia bicar nem comer. Acho que Nala “brincou” com ele, e a voz da consciencia fez com que ela o “poupasse”, pois sua mandíbula destroe qualquer brinquedo à prova de cachorro.

A veterinária botou uma gola de plastico em volta do pescoço do passarinho, pra que não pudesse bicar o remédio, e aí sim, ele se estressou. Começou a pulular desequilibrado, tentando se livrar da gola, que eu então removi, “ He can’t have access to the medicine” a mulher avisou, enquanto eu mentalmente lhe dizia “fuck off”, e decidia manter ele entre as minhas mãos. Pra passar a noite, o alojei entre os meus seios, e ele dormiu numa ótima, enquanto eu velava. De manhã, o remédio fora absorvido, e ele pode se recuperar na gaiola. Pra ele, stress não existia.

Durante os anos aqui em Boulder, ele também sobreviveu duas tentativas de fuga, uma no inverno, e outra no verão. Tweety o viu saindo pela porta afora, e pousando la no alto do galho de uma árvore. Subindo no telhado do vizinho, ela o chamou, e ele voltou pro ombro dela. Quando isso aconteceu no inverno, ela

achou que foi por causa do frio que ele voltou, mas no verão ele agiu do mesmo modo. Muito fôfo.

O passarinho revelou coisas lindas pra gente. Morando numa sala ao lado do quarto de Tweety, ele começava a piar, assim que ela abria os olhos de manhã. Mesmo sem poder ver ou mesmo ouvi-la, ele adivinhava o momento em que ela acordava.

A percepção dos pássaros é telepática, e a inteligencia deles vem de outra dimensão. Se dar conta disso é aceitar um lindo mistério, e se livrar um pouco da auto- importancia da nossa especie humana, que pensa poder explicar totalmente os animais através da biologia e da pura necessidade de sobreviver. Essa auto-importancia detesta o mistério.

“Entendendo” e curtindo o nosso carinho, e se botando disponível de uma maneira que no elemento natural não poderia, ele confirmou que o amor é a única linguagem que desarma, cura, e fala a todos os seres. O amor, maior poder de individualização, vê em cada um, por mais pequeno que seja, o

mundo que é em si, içando-o do anonimato e o fazendo renascer.

Durante rituais de Ayahuasca aqui em casa, eu saia da sala e ia conversar com Marley, pois os animais “sentem” a fôrça do sacramento da floresta. Numa dessas vezes, eu me dei conta de como ele estava mais bonito e vistoso, tendo a extensão vermelha do seu peito tomado a forma de um coração, e ficado

mais vibrante e chamativa. Era primavera, e a natureza embelezara o passarinho pra que ficasse mais atraente, como em geral acontece com os animais nessa época de acasalamento.

Me ocorreu com a maior tristeza que nesse sentido a beleza de Marley não lhe serviria pra namorar, e fiz questão de lhe dizer que mesmo assim ela não era vã, “ Voce está lindo passarinho, não pensa que a gente não nota e não aprecia esse seu peito lindo, e todas as cores que voce tem!”

Empoleirado no alto de um armário, ele ouvia tudo com atenção. E mais um mistério: Tenho certeza que entendeu, assim como tenho certeza que, como falei pra Tweety, quando ela veio me dizer que ele tinha partido, “…Ele foi pousar lá na lua e de lá voar pro paraíso!”