“Então como é que não podemos vê-lo?” pergunta um americano entre os convidados do Duque de Windsor à sua casa na França, para assistir por televisão a coroação da então jovem Elizabeth ll. O convidado se refere ao que, nas palavras do próprio duque, concernia o momento mais solene e sagrado dos rituais da coroação e por isso protegido das câmeras; a unção.

“Porque somos mortais!” responde então o Duque ao americano, e prossegue, enquanto o momento se desenrola, indisponível a ser visível `as câmeras:

“Óleos e juramentos, orbes e cetros, símbolos sobre símbolos, uma teia insondável de mistérios arcanos e liturgia, confundindo tantas linhas que nenhum clérigo, historiador, ou advogado, poderia decifrar”, e leva o mesmo convidado a proclamar:

“Isso é loucura!”

Ao que o Duque responde:

“Não! é perfeitamente sensato. Quem quer transparência, quando se pode ter mágica? Quem quer prosa, quando se pode ter poesia?” e referindo-se `a rainha, “Tire o véu, e o que resta? uma jovem comum, de imaginação modesta. Mas vista-a como a vestiram, ungindo-a com óleo, e, hey presto, ela se torna uma deusa!”

E a rainha, como num transe, não manifesta sombra de emoção durante aquele momento, ou na verdade, qualquer outro.

“The Crown” tem alguns desvios da realidade, mas estes são triviais porque não influenciam a coerência e convicção que a série transmite, de uma rainha que nunca chorava em público, havendo duramente renunciado sua vida e suas emoções pessoais para servir a causa de só representar o que considerava sagrado, segundo não só a série “The Crown”, mas o documentário no qual o biógrafo da família real fala da relação entre ela e sua irmã Margareth.

Representar a monarquia, como Churchill recomenda a então jovem rainha na série The Crown, é representar o que a coroa representa. Por isso, ele lhe diz que nunca deixe perceber como é difícil carregá-la, ou o fato de se fosse o caso, estar cansada, mas somente “the eternal” (o eterno). Churchill era poeta afinal de contas, e assim podia acreditar numa maneira de ser que só transmitisse a eternidade.

O documentário citado acima sobre a relação entre as duas irmãs mostra o que é tão bem transmitido na série, concernindo `a mudança da relação entre elas.  Diz Vickers (o biógrafo da família real que informa esse documentário) que o destino as forçou a se separar.  Servir `a coroa se tornou o valor absoluto de Elizabeth, e, portanto, acima do amor que ela tivesse por qualquer outra pessoa.

“Elizabeth sabia que estava deixando em segundo plano sua família, sua irmã, e nada seria igual. Foi muito intenso para ela saber que parte de sua felicidade criava a infelicidade de Margareth”, informam. “Felicidade”?

Quantas vezes foi transmitido, incluindo nesse documentário, que felicidade, para Elizabeth, estaria em poder ser uma aristocrata fazendeira, uma inglesa do campo, mãe de família e esposa, rodeada por seus amados cachorros e cavalos?

Prosseguindo, diz o documentário, “Mas Elizabeth soube, que sobre o que se apresentasse entre a coroa e seu amor por sua irmã ou por qualquer outro, a coroa ganharia primeiro lugar.

Vivi três anos na Inglaterra na década de 80 pra aprender inglês, e durante aquele tempo, não tinha a menor curiosidade de ouvir os discursos da rainha em ocasiões significativas. Não podia compreender a religiosidade com que os ingleses, nas casas em que morei, se botavam diante da televisão para assisti-los, pois eu imaginava que o apreço por Elizabeth resultava de uma mera convenção. Até que décadas depois, “The Crown” a revelou para mim e para muitos outros.

Por aqui, dizia-se que Elizabeth se tornara um ídolo feminista através desta série, cujos desvios da realidade são exceções triviais, como, por exemplo, o fato de ela não ter na realidade visitado Ghana para competir com Jacqueline Kennedy, ou o fato de não ter havido disputa entre Michael Adene e Charteris para suceder Tommy Lascelles como secretario privado da monarca. Essas e outras trivialidades não influem no que “The Crown” transmitiu da rainha de mais longo reinado no Reino Unido.  Não interferiu no fato de que antes de ser ela a rainha desse reino, foi a rainha da coerência, tendo feito o sacrifício de sua pessoa para servir “o sagrado”, e a rainha da convicção, pois, mesmo diante de sua falta de preparo educacional, o que ela mesma encara e admite, conseguia estar certa de si ao censurar a conduta de Churchill em certo momento, e a de outros homens que considerava mais inteligentes, maduros, e melhor preparados que ela mesma. E os censura com a maior elegância e respeito. Pois Elizabeth tinha a humildade de encarar seus limites e, sem nenhum medo de enfrentar essa realidade, se fortalecia.

Enquanto outros de seus parentes queriam se auto engrandecer através de sua realeza, promovendo, enquanto monarcas, ou parentes próximos destes, a sua personalidade e individualidade, Elizabeth II, profundamente cristã, procurou modelar sua vida nos ensinamentos e conduta de Jesus como líder servidor. Os outros queriam o melhor dos dois mundos, o da afirmação de si mesmos e o de sua realeza. Tinham um pé lá e outro cá. Mas a rainha soube optar, anulando sua individualidade no serviço da causa que acreditava sagrada, e através de sua vida de rigor ritualístico vemos que nisso ela e os ingleses realmente acreditavam.

Em seu discurso ao império, quando só tinha vinte e um anos, fez o juramento de servir à coroa durante toda sua vida, fosse esta longa ou curta. Longa sabemos que foi, e ela cumpriu sua promessa independentemente de como avaliamos sua causa. Pois mesmo que possamos considerar a do partido trabalhista mais nobre do que a da monarquia, o que se trata aqui é a coerência do líder ou do representante de cada uma. Assim como o duque de Windsor quis continuar sendo rei depois de ir contra o que a monarquia inglesa tolerava, há governantes que dizem lutar pelo povo (e aqui não estou me referindo a Lula, pra quem eu torço vitória sobre o presidente brasileiro e apocalíptico atual, cujo nome nem consigo dizer ou escrever) e só querem se enriquecer. Ou fingem lutar pela moral, como esse próprio presidente que mencionei, enquanto levantam a bandeira da mentira e da covardia. Enquanto isso, a coerência de um líder se trata de esta ou este líder agir em comunhão com o que representam.

Pois, como disse Kierkegaard:

“Pureza de coração é querer somente uma coisa”. Quer dizer, pureza de coração é integridade.

God bless the queen!