Eleonora Duvivier

Numa época esquecida da humanidade, as pessoas viviam de modo bastante diferente. Em comunhão com a natureza, elas também estavam de braços abertos para o imprevisto. Ninguem planejava, ninguem se antecipava ao presente para tentar controlar o futuro, na ilusão posteriormente tao comum a todos, de estar preparado e defendido diante do inesperado. Todos eram felizes, ou se nao felizes, desanuviados. Mas havia dois primos irmãos bastante anemicos, solitarios, parecidos, e frustrados. O nome de um era Conforto, do outro Medo. Sem amigos e sem poder de comunicação, eram sombras, que viviam atras das pessoas tendo que segui-las para se movimentar. Eram alongados e pretenciosos, imaginando-se vir a ter grande poder, se a

oportunidade certa lhes fosse dada. Qual seria ela?

Sua grande ambição era se desenvolver e dominar todos os humanos. Tinham certeza de que conseguiriam, se pudessem ficar mais fortes e independentes. Sabiam que para isso, tinham que entar dentro das pessoas, pois somente no amago delas poderiam realmente crescer ao ponto de se tornarem segunda identidade de cada uma. Mas, abandonados como eram, nem conseguiam

melhor se aproximar de alguem.

Num dia ensolarado, em que todos curtiam o mar mais lindo do planeta, os dois primos quase desvaneciam na areia. O sol do meio-dia, na cabeça das pessoas, nao permitia que tivessem sombras, e os dois primos tornaram-se residuos, lembranças, ou germes de projetos futuros, agonizando.

“ Já estou cheio de ser ignorado, e de só existir como projeção escura da forma de alguém, quando a luz o ilumina”, gemeu o Mêdo.

“Temos que fazer um plano de ataque…” sugeriu o Conforto.

“Que plano? Voce é um moloide, que so gosta de almofadas e coisas que esses humanos não precisam!”

“E voce? Que so faz se gabar que consegue secar a vida de qualquer um, e esta aí nas últimas?

“Não vamos brigar, somos muito parecidos e dependemos um do outro…”

Conforto nem mais tinha forças pra falar quando, de repente, havendo o sol se aproximado mais um pouco da linha do horizonte , a projeção de uma pequena sombra se fez atrás de uma moça que passava perto do agonizante. Atraído pelo vício da interdependencia, caracteristica fundamental das sombras (como parasitas que estas são dos seres na luz) assim como marca fundamental dele proprio, o Conforto imediatamente se fundiu com ela. Sentindo-se um pouco

mais forte, disse ao Mêdo, “Moloide ou não, tenho um plano que não só vai me fortalecer, como te eleger rei, em consequencia da minha sedução!”

“Reinarei como consequencia de voce? Ta louco? Sou eu que venho primeiro! Sou eu que dei origem a voce!”

“Ao contrário! Voce vai ver que a necessidade de mim é o que dá origem a voce, e o que te faz crescer!” reclamou Confôrto.

“ Seja o que for, contanto que me tire dessa merda…”

Enraizando-se de vez na sombra da moça, o Confôrto se transformou em alucinações, que invadiram a cabeça dela. A primeira foi uma barraca colorida, que serviria como abrigo daquele sol que estava já quente demais. Antes que a moça pudesse desejar a barraca, esta se transformou numa cabana de praia, sôbre cadeiras reclinadas, separadas por uma mesinha coberta de refrescos, e forradas com colchonetes. “ é disso que todos precisamos, é isso que vai fazer a praia ficar mais agradável e macia”a moça pensou, antes de ir dormir na relva. Quando começou a sonhar, facilitou o trabalho alucinante do Conforto. Viu a casa de que passou a necessitar, com teto sobre sua cabeça pra lhe defender do vento, da chuva, e até do calor, com aquele ar refrigerado que lhe fez se perguntar como havia conseguido viver sem tudo aquilo, enquanto mais imagens de segurança e facilidade continuavam a invadir sua cabeça. Imagens de coisas

que lhe defenderiam contra as manifestaçoes da natureza, e contra o imprevisto. Imagens de aparelhos tecnológicos que poderiam prever o clima, os furacões, ajudando a humanidade a “se prevenir”, a ficar capaz de planejar!

“Como fomos tão cegos até agora?” ela se perguntou, “tenho que transmitir isso tudo aos outros, para que comecemos a fazer todas essas coisas maravilhosas!”, concluiu, com uma urgência que até então lhe fôra desconhecida.

Não demorou muito para que, depois desse “contágio” com ela, a humanidade fabricasse tudo aquilo que tinha sido miragem. Logo logo, perceberam, com muito orgulho, terem se tornado capazes de mapear seus dias, e terem criado algo chamado “Zona de Segurança” (Safety Zone) em torno de cada um. Não sairiam mais dela, pra que? Se tivessem que viajar para áreas diferentes, poderiam planejar, e desse modo, criar novas defesas. Ninguém mais seria “porra louca” como tinham sido, ninguém mais estaria exposto de peito aberto, ninguém mais confiaria no próximo, menos ainda nas surpresas de Deus, no que a Ele pertence!

Assim armados, não existiria mais nada que pudesse ser além deles, nada mais que pudesse lhes surpreender, ou que não pudessem “controlar”. O Medo, o qual pouco a pouco se fortalecera, enquanto tudo isso acontecia, tornou-se gigante. Era ele que impediria a todos ousarem sair do que fôra criado como garantia de sobrevivência. Era ele que fez o sobreviver macio e acuado ficar mais importante que o viver. E foi ele que desenvolveu a defensiva de cada pessoa ao ponto desta se transformar em agressão. Soberano, ele originou uma necessidade até então desconhecida, a necessidade de poder. Os que tivessem mais poder estariam seguros e garantidos pra sempre. Assim, ele finalmente transformou a religião, algo que havia sido espontanea e indiferenciada telepatia com os deuses, em motivo de diversidade conflitante, briga, e desconfiança.

Sentado num trono, atrás da humanidade, o Mêdo nunca conseguiu deixar de ser sombra, mas finalmente criou a guerra, assegurando pra sempre sua soberania!

O Mêdo é distância de Deus, distância de nós mesmos!