Vindo de Cabourg, logo no aeroporto de Ibiza, encontramos Benki e seu grupo, chegando do Brasil. Foi providencial, pois, trocar de país é como passar de um universo a outro, mesmo que seja de praia pra praia, costa de um, para ilha de outro, como no nosso caso. A língua, o clima, a expressão emocional das pessoas, tudo muda tão aprubtamente, que a gente, atordoado, sente como se nossa alma estivesse ainda ficado no lugar que deixamos, e o corpo, traindo-a, continuado.

Eu e minha familia viemos assistir ao encontro de líderes indígenas do mundo, no qual os Ashaninka fariam parte.Quando vimos Benki, caminhando com seu grupo, leve e intenso, como uma estrela cadente, fomos abraça-lo, e senti como se ele me tivesse devolvido o foco; resgatado o que ainda, em nós, se debatia entre dois mundos.

É bonito ver o amor e consideração que ele e sua mulher, Roseli, moça doce, discreta e querida, repartem. Moisés, seu irmão, é outro pajé Ashaninka super considerado, que veio com eles. A coincidência de chegar num aeroporto ao mesmo tempo em que chegou o grupo Ashaninka- logo antes de pisar no mundo diferente que, la fora, se desenrolava- teve o efeito de uma melatonina espiritual, como que realinhando todas as partes de nós, fragmentadas, ainda, pelo espaço e pelo tempo.

No caminho para o hotel, lembrei-me de um ritual de Ayahuasca de que participei na floresta, quando vi padrōes Norte Americanos, projetados nas pernas dos índios que cantavam, `a volta de Benki. Na ocasião, me perguntei o motivo daquelas visōes. Nada que Ayahuasca manda é gratuito, e a densidade de suas revelaçōes vai se destilando pelo tempo, de maneira que muitas delas podem levar meses para ser “traduzidas”. Vi também, naquele mesmo ritual, um homem idoso, cuja vestimenta era feita, também, de padrōes e cores da bandeira norte Americana. Pensei tratar-se do “tio Sam”, mas por que?

Dólares jorravam para o ar, `a volta da entidade Norte Americana, num momento crucial. As cores, sempre irridescentes nas “visōes” que manda o sacramento da floresta, tem uma luminosidade própria, que vem de dentro delas; sua luz é a de seu próprio ser, ao invés de resultar, como na realidade trivial, de qualquer foco de luz externa, seja do sol, seja de lâmpadas artificiais.

Quem seria, aquele tipo de tio Sam? Por que Ayahuasca me permitia ve-lo? E os dólares, por que?

Na emocionante cerimonia de abertura do Aniwa (nome do encontro que mencionei) percebi, ao ver o cacique Americano Spotted Horse, que fora ele, o “tio Sam” da minha visão. Vestia a mesma roupa com as cores da bandeira, cujo azul escuro era semeado de círculos brancos, ao invés das estrelas que, na visão, também não estavam na sua roupa. Ja idoso, ele se apoiava numa bengala, para caminhar, mas sua voz era mais poderosa do que a de muitos homens moços. Para quem não sabe, Spotted Horse é um líder Lakota, sob cujo território o governo Americano, com o cataclísmico Trump, anulou a decisão anterior de Obama, e permitiu que se construísse um oleoduto. Tudo, claro, pela causa do dinheiro. Para que dólares e dólares jorrem, como na minha visão. Nesta, entretanto, havia um toque celebratório, que seria, talvez, anunciador do Aniwa. A gente sempre se impressiona com o sincronismo do Ayahuasca, e mais ainda, quando este se projeta, clarividente, no futuro. Gostaria também, a partir da euforia colorida da minha visão, esperar mais alegria para os índios e o planeta no futuro… Quem sabe? Ha que se acreditar, até por simples coerência de querer continuar nossa vida, neste mesmo planeta. “Never, never, never, give up” disse Churchill, com a sabedoria transcendente de um guerreiro. Repartindo, também, outras de suas inspiradoras palavras, que salvadoras, revelam não somente uma fé inabalável, como prova fundamental de dignidade, “ If you are going through hell, keep going…” ele disse.

Benki, entre todos os que rezaram, nessa abertura, foi o único que olhou para o ceu, e pareceu ascender, com sua prece. Moisés entoou um belo canto Ashaninka, com sua voz única, de outra dimensão, e os líderes Huni-Khuin e Yanawa cantaram, também, na sua língua original. Houve uma dança de tirar o fôlego, the deer dance, executada por um índio mexicano da tribo Mayo Yoreme. Enquanto seus dois companheiros tocavam percussão, ele se movia sem parecer tocar o chão, sacudindo dois chocalhos, em movimentos circulares, produzindo som e ritmo de “outro mundo”, movendo-se com a agilidade de um animal, de espécie desconhecida.

Os índios sao sempre surpreendentes. Pertencem sim a uma espécie ainda desconhecida, pois sua grandeza nunca foi totalmente compreendida. O dia em que for, as preces do Aniwa para o bem da natureza terão sido ouvidas. Podemos estar certos disso!