Os convidados que irão soprar as velas do bolo de aniversário da mãe são filhos, netos, bisnetos, um irmão e a mulher – meus tios Edson e Belinha, os ainda vivos de uma penca de oito irmãos dela.

A mãe e eu temos pouco em comum, acho. Mas o desapreço por festejar os próprios aniversários é uma exceção. Não pelo mesmo motivo, talvez. Não sei se ela me transmitiu essa aversão ou se a ojeriza é sequenciamento de DNA.

Depois dos 80 anos, sempre que entra agosto ela começa a se angustiar com a possível organização de uma pequena e simples celebração, que repete uma pequena e simples lista de convidados. Todos com um ano a mais, evidentemente. Adultos virando velhos, adolescentes virando adultos e bebês virando infantes.

Fazer ou não fazer uma reunião familiar? No final, a decisão é sempre a mesma. Ante a possibilidade de almoçar num restaurante ou reunir a turma em casa, a segunda escolha é sempre a vencedora, não sem contramarchas, que nos faz, os filhos, planejar e replanejar até o último momento. A campainha da porta toca e surge a primeiro neta com o marido e sua prole. Pronto, a festa começou e não dá mais para voltar atrás. A mãe é assim, decide sem decidir.

À primeira vista, sobra pouco da figura de nossa mãe, sobrevivente às várias e naturais perdas da vida. Quem é essa de quem o tempo roubou o amendoado dos olhos negros penetrantes, redesenhou a boca reta, arredondou o corpo sensual e rareou os fartos cabelos? Não é este o retrato que nos olha da parede desde que éramos crianças.

Quem é essa hoje filha rebelde dos filhos e que, por vezes, se vê com 20 anos dançando com um cavalheiro, que não o nosso pai, diante da Torre Eiffel que jamais conheceu? E que sonha subir e descer as escadas do metrô de Nova York, desde que sentada em sua cadeira de rodas para longas distâncias e que chama de carrinho?

Diante das forminhas de doce ainda vazias, anunciando a efeméride, a mãe desabafou sua angústia sempre potencializada no mês oito. Disse que, de verdade, não queria fazer aniversários, muito menos fazer 91 anos, conta que matematicamente a aproxima mais da morte. Para desanuviar, eu disse, e ela concordou, que isso não podia acontecer antes de o sábado terminar para não estragar a festa.

Ao antecipar um presente de meu irmão pretendendo que ela o usasse na comemoração, a mãe abandonou sua confusão e me convenceu de trocar a blusa florida alegando não ser mais garota para vestir tantas cores. Vou fazer 91 anos, e empacou. Lá vou eu atrás de uma estampa menos primaveril e mais outonal, assim como fazer 91 anos.

Comprei bolas de encher prateadas e douradas e outras em forma de coração para enfeitar a casa, morada de santos num altar, cristais, vidros, plantas e móveis desconexos. Estou economizando fôlego para dar ares aos balões na tarde de sábado, a fim de que não murchem antes da vesperal. Conto também com o precioso oxigênio das duas fiéis escudeiras da mãe.

Para testar os pulmões, abri com antecedência o saco de bolas em coração e pus-me a soprar, soprar, soprar. Além de não serem do tamanho que imaginei, a forma de coração antes de estourar  precocemente dá lugar a uma bola com dois chifrinhos. São tetas de vacas, disse Márcia, uma das escudeiras, numa espontânea e genuína interpretação, livre de preconceitos, museus e enciclopédias.

Minha irmã envia pelo celular um instantâneo da lembrança que bolou para oferecer a cada um dos poucos convidados da festa de nossa mãe.  Embalados em celofane, um pano de prato  dos inúmeros bordados por ela, junto com uma foto que fiz no ano passado, agora com a legenda. “Lembrança dos meus 91 anos”. Ficou lindo. Mesmo.

Ela também avisa que comprou uma bombinha manual de encher balões, como aquelas de pneus de bicicleta. Não preciso mais prender a respiração. Não há mais tempo para voltar atrás. Vamos à festa.

Foto: Pinterest