Chovia cântaros. Adoro. Mas eu não estava propriamente feliz. Estou enfrentando uma árdua fisioterapia, que me obriga a reaprender o que nunca soube. Estabilizar a boca.  Sou uma caras e bocas inata. E, agora, descubro que essa mania me provoca uma dor absurda na região temporomandibular.  Uma dor que às vezes não se sabe de onde vem nem onde nasce.

A fisio,  minha conhecida de séculos, calça uma luva e enfia o dedo na minha boca, tentando trazer o maxilar para o lugar certo. Dói muito. Meu cérebro diz que o certo dela é errado. Ela diz que  o errado é que é o certo. Ela também pediu que eu não use colares porque o cérebro interpreta que deve curvar a coluna para atender ao peso, leve que seja, da biju. Arranco a gargantilha e a enfio na bolsa. Saco!

Também por ordem médica, baixei no celular um aplicativo cujo ícone, uma sorridente dentadura dupla, envia, de hora em hora, mensagem lembrando que os dentes não podem estar trincados. E pergunta se você está sentido dor. E pede uma nota para o seu sofrimento, gerando um relatório. Some a isso, que você deve estar todo o tempo relaxada (e tensa) para lembrar que a língua tem de tocar o céu da boca, como um leve apoio ao maxilar superior, enquanto os lábios ficam fechados.

Abri o guarda-chuva e fui andando para casa, pensando em como tornar hábito esses malabarismos cerebrais, convencendo uma massa cinzenta, há muito acostumada a não produzir um semblante plácido, mudar de humor. A chuva caía mais forte e comecei a pensar nos transbordamentos e nos ralos sempre entupidos dessa cidade mais que nunca abandonada. A língua no céu da boca. Os lábios fechados levemente. Pessoas ficariam sem voltar para casa. Barracos e casas toscas podiam desabar como sempre, só que agora no inverno. E eu quase feliz porque estaria logo no quentinho do meu quarto.

Pulei poças, desviei de gente correndo, afastei sombrinhas fura-olhos, senti a umidade da água no  meu tênis, outrora branco, e vi lixo arrastado pelas correntezas nos meios-fios. Depois de atravessar com cuidado o último sinal que me separava de casa, vi que na marquise do prédio um grupo de pessoas cercava uma mulher jovem, de bermudas, sentada numa cadeira que trouxeram para a calçada.

Ela sobrevestia um agasalho olímpico emprestado por um instrutor de ginástica que a inquiria delicadamente sem obter resposta alguma. Não tinha bolsa, não tinha nome, não tinha celular, não tinha endereço, não tinha fome, nem ferimento. Tinha frio e uma ar de desamparo, como alguém que saiu para tomar uma fresca e foi apanhado por um temporal impiedoso que lavava sua memória. Que não a deixava sair daquele lugar. O jornaleiro chegou e disse que tinha chamado uma ambulância. Mas qual era o seu mal, eu perguntei? Ele deu de ombros, preocupado. O grupo em torno da moça crescia e agora uma senhora parecia conseguir arrancar algumas palavras dela. Muito devagar, muito devagar.

A garçonete de um restaurante em frente disse que já tinha oferecido um copo de sopa quente e que ela rejeitara. A moça estava sozinha numa rua de uma cidade abandonada de um país afogado em seu temporal.

Uma gritaria chamou a atenção dos que reunidos seguravam seus guarda-chuvas escorrendo em torno da moça. Parecia um assalto ou um arrastão no meio de tanta chuva, do asfalto salpicado de faróis e de pernas apressadas. Alguém gritou que eram ratazanas fugindo dos bueiros trasbordantes que entravam em erupção hídrica nas calçadas.

Todos olharam em volta certificando-se de que os roedores da cidade estavam do outro lado da rua. A senhora de paciência infinita continuava buscando um nexo para os monossílabos da moça. Reparei na inutilidade da minha presença ali, e, confesso, temi que algum ratão cruzasse o meu mínimo caminho até a portaria.

Vou procurar saber o que aconteceu à moça quando encontrar a garçonete. Como poderia lembrar que a língua deve tocar o céu da boca e os lábios devem estar fechados? Enquanto apalpo, insensatamente, o maxilar dolorido, a dentadura sorridente me chama na tela do celular. Já sei, já sei, penso. Meu cérebro: o quê? o quê?